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Frei Betto

Para expurgar anjos e demônios

Um dos nomes mais aguardados da 9ª Jornada de Literatura, Frei Betto participa amanhã (31/8) do debate “A preservação da identidade cultural no contexto da globalização”. Ele é autor de uma extensa biografia, que inclui “Fidel e a Religião”, o livro mais vendido fora do Brasil, com 23 traduções em 32 países. Esse ano, ele completa 30 anos como escritor. Vivendo de seus direitos autorais, é completamente avesso às badalações literárias. E tem mais, não dá entrevista para a televisão: “Por razões espirituais, não tenho nada contra, é um espaço privilegiado. Mas acho que tem a ver com minha relação com a palavra, a TV me canibaliza”. Seu primeiro livro, “Cartas da Prisão”, foi publicado em 1971 na Itália, saindo no Brasil apenas em 1974. Sua obra mais recente é “Hotel Brasil”, um romance policial metafórico, publicado pela Editora Ática.

Extra Classe - O processo de globalização é o tema que envolve sua participação na 9ª Jornada de Literatura. Qual é a tônica de seu pensamento?
Frei Betto - Sou a favor da globalização, mas contra o atual modelo, que qualifico de globo-colonização. Trata-se da imposição de um modelo de sociedade imposta pelos Estados Unidos ao conjunto do planeta, subjugando nossas identidades étnicas, culturais e inclusive o que temos de mais simples, que é o paladar. É a macdonalização do planeta.

EC- Como assim, estamos pasteurizados?
Betto - A pessoa perde a sua identidade, não assume suas raízes ou busca paradigmas fora de seu círculo vital. A dívida é eterna e impagável. Isso vai corroendo nossas raízes culturais, nossas identidades, valorização. Até porque o G7 (Grupo dos sete países mais ricos do mundo) cada vez produzem menos cultura e mais entretenimento. Cultura é o que engrandece a consciência e o espírito e isso a gente encontra pouco na televisão, que basicamente se abastece de enlatados norte-americanos. Na verdade, encontramos o entretenimento, que visa atrelar nossos cinco sentidos à ânsia consumista. Hoje temos cada vez menos Goethe e mais Gugu, menos Dr. Fausto e mais Faustão.

EC - Mas nos venderam a globalização como algo novo:
Betto - Não difere da colonização nos séculos XV e XVI. Apenas os métodos são outros. Antes, as caravelas. Hoje, o FMI (Fundo Monetário Internacional).

EC - E qual o papel do escritor e do pensador diante disso?
Betto - Aí entra o papel do escritor e da literatura; o resgate que se faz pela arte. No mundo artístico, a literatura tem um papel fundamental, porque é sempre uma reprodução estética e ética da realidade. A literatura é tanto mais universal quanto mais profundamente local, mais próxima das raízes culturais do autor. Jorge Amado é prova disso. Num país onde há pouca literatura se coloca a exigência ao poder público de expandir recursos para a alfabetização e melhorar o sistema cultural. Coloca-se o desafio de fazer com que os meios de comunicação – como rádio e TV – sejam veiculadores de obras literárias através de novelas, mini-séries, debates, entre outros.

EC - E como o senhor encaixa a sua literatura nesse processo?
Betto - Não estou fazendo literatura para alcançar o sucesso, mas para poder dialogar com milhares de pessoas e expurgar meus anjos e demônios. Sou um escritor compulsivo e uma pessoa apaixonada por Deus. É o meu caso de amor.

EC - A fé e a religiosidade são presenças constantes em seus trabalhos?
Betto - Descobri a fé aos 20 anos, fazendo jornalismo.

EC - Mas há também a sua opção preferencial pelos pobres que, ao longo de sua vida lhe valeu perseguição política e a alcunha de subversivo. O senhor acredita que religião e marxismo podem se casar?
Beto - O marxista e o cristão se encontram na medida em que estão preocupados com os direitos dos pobres. Não se pode esquecer que os três pilares da cultura ocidental são judeus: Jesus, Marx e Freud. Isso quer dizer que os paradigmas culturais hebraicos estão presentes nas três lógicas. Há mais proximidade entre a proposta de Jesus e a utopia marxista do que se possa pensar: no paradigma cristão, o paraíso, rompido pelo pecado original; no paradigma marxista, a sociedade comunista, rompida pela propriedade privada dos bens. No cristianismo, o pecado original gerou a distância entre criador e criatura. No marxismo, gerou a alienação, que é uma dissociação entre a essência e a existência do ser humano. Para o cristão, o resgate deste paraíso perdido se dá através da história, o sujeito do resgate é o oprimido. Para o marxista, a mesma coisa e o autor do resgate é o proletariado. No cristianismo, a história avança rumo ao reino de Deus e na pregação de Jesus. No marxismo, a história ruma para uma sociedade comunista, onde todas as contradições sociais estariam erradicadas. Isso quer dizer que, o tempo todo, os dois lados têm características idênticas, pois estão ancorados na mesma cosmovisão hebraica.

EC – Mas cristãos e marxistas se negam mutuamente:
Betto - O marxismo, do ponto de vista de seus paradigmas, é uma foto negativa do cristianismo. Embora o marxismo seja filho da racionalidade moderna e negue a transcendência e a existência de Deus, não cabe ao materialismo ou a qualquer outra ciência negar a existência de Deus. O cristianismo também não é uma ciência, mas o cristão entende melhor o mundo que vivemos e ele conhece as categorias marxistas. Todo verdadeiro marxista é um cristão, embora não o creia e todo verdadeiro cristão é um marxista, embora não o queira.

EC - Como foi escrever seu livro mais famoso, “Fidel e a Religião”, um marxista e um cristão frente a frente?
Betto - Foi como caçar um tubarão. Foi difícil fazer com que Fidel Castro ficasse sentado tanto tempo falando das questões dele, principalmente da questão religiosa. Mas o final foi compensador. No Brasil, foram 23 edições e muito sucesso lá fora.