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A Jornada começou um dia antes

Luís Peazê


Na chegada em Passo Fundo, alguns dias antes da Jornada começar, há uma surpresa. Ela já começou. À parte a recepção do campus da UPF, feita por uma avenida guarnecida de azaléias florindo, a entrada é púrpura, e as ruas marcadas por ipês de flores amarelas e arroxeadas, a sensação é de se estar chegando a uma universidade do primeiro mundo. A expectativa para conhecer o circo onde tudo acontece, é muito grande -- o contato de 115 escritores e centenas de outros convidados e artistas com um público adulto estimado em mais de 4000 e mais de seis mil crianças – literatura, exposição, música e teatro, um espetáculo mostrado para o mundo inteiro via cobertura de mais de 150 jornalistas de rádio, jornal e televisão, sendo transmitido com imagens instantâneas ao vivo e via internet para todo o planeta. Novamente, ao se avistar o circo à distância, outra surpresa, desta vez é impossível não se emocionar de verdade: o arranjo monumental é montado no alto de uma colina arredondada, que por sua vez compete pela geografia com outra colina do mesmo porte. Na área onde estão montados três circos, um central e maior, com as cores das bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul, os demais copiando as tonalidades, Walmor, o responsável pela segurança do evento orienta um grupo sorridente e prestativo de 50 soldados uniformizados – conduzem o trânsito, orientam os visitantes e carros de serviço. O primeiro bloco de estandes à esquerda é a feira de livros, onde Patrícia, estudante da própria universidade responsabiliza-se pela colocação dos livros que chegam de todas as partes do Brasil, das principais editoras. À direita fica a área de alimentação, mas como o circo é vazado, toda essa infra estrutura só é notada mesmo depois do espanto ao se notar a outra coxia, que dá a impressão de que o circo flutua no ar, suspenso por uma energia inexplicável. O circo é mesmo mágico. E pensar que tudo começou com uma idéia quixotesca e uma frase simples. Prof. Tania, a 20 anos idealizou a jornada mas a achou inexequível, Josué Guimarães então lhe disse: faz, organiza tudo, que eu trago os meus amigos, ele se referia aos escritores, fundadores da Jornada, em 1981, que neste nono capítulo estão sendo homenageados – Carlos Nejar, Moacyr Scliar, Antônio Carlos Resende, Armindo Trevisan, Deonísio da Silva e Sérgio Capparelli. Esta segunda colina é verde, um campo, como dizem os gaúchos, coberta com uma pele de clorofila, e o horizonte cortado no espaço em arco imita a silhueta da própria Terra, como diria um escritor lírico duma era que ainda não existe. É domingo de manhã, dois dias antes do evento ser inaugurado, e no quartel general da organização da 9a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, montado na Biblioteca Central, a Professora Tânia e sua equipe vivem intensamente o evento. A gente se afasta do local do circo, cruzando o campus em direção a Biblioteca Central, olhando para trás volta e meia, impressionado com a magnitude da jornada, não bastasse estar ocorrendo na universidade o ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio, mais de cinco mil estudantes, dezenas de ônibus manobrando no estacionamento, uma atmosfera de que o campus está vivo, invadiu o domingo pulsando educação e cultura. O que faz a equipe da Prof. Tânia Rösing nesta manhã de domingo, a dois passos do início oficial da jornada? Ela prepara, com a sua braço direito, a Prof. Lurdes Canelles, Assessora Executiva, os discursos e apresentações da cerimônia de abertura, corrige e insere expressões, enquanto dois auxiliares incansáveis, Luciano e Cristiano, manipulam o material de apoio para os visitantes e convidados – um kit requintado com a literatura da programação e um toque de charme resolvido com um brinde original: uma simpática mochila com uma manta bordada com a logomarca da UPF e o título da jornada. Quem já participou da organização de eventos, como uma bienal ou feira do livro, sabe que nos últimos dias que antecedem o evento, a pressão psicológica é intensificada ao limite pelos prazos de entregas das centenas de implementações, quando basta apenas quatro refletores não serem instalados para motivar o caos. No entanto, no QG da professora Tânia, a atmosfera é de um domingo no parque. Ela trouxe, de seu próprio pomar, uma caixa de bergamotas para distribuir para os funcionários que estiveram trabalhando até a meia-noite, nos últimos dias da semana e se refere aos mesmos de Piás da Jornada, para os homens, e Jornadetes para as meninas – todas professoras ou estudantes da universidade. E aqui eu entro na história: acabo de presenciar a chegada do CD com a música de abertura da jornadinha infantil, o capítulo dedicado às crianças, do compositor Flávio Guerrico da Silva, Gutenberg nas Estrelas. A música foi tocada e eu chorei de emoção. Não há outra forma de contar. Talvez se eu fosse escrever uma matéria pela milésima vez, se eu fosse apenas copiar os releases repletos de informação distribuídos pela Assessoria de Imprensa, pela Vivian e Veronês que pilotam as pretinhas, e informar dados numéricos, eu não sofresse um ataque de paixão. Mas fui à Jornada também como escritor, fui como leitor, fui ser um jornalista romântico, eu tinha acabado de chegar das colinas do circo, tinha visto a Terra do espaço, imaginei a multidão de crianças invadindo a jornada, tinha em minha mochila dois livros para pedir autógrafos, um de minha sobrinha de nove anos, interessada numa dedicatória da Marina Colasanti, outro do filho de um amigo, de seis anos, residente de Passo Fundo e aflito por ter o autógrafo de Ruth Rocha. Meu próprio filho, que vive nos Estados Unidos, com a simplicidade de uma criança me pediu para vir ao circo, quando soube para onde eu estava viajando. Me sentindo meio ridículo por ter deixado algumas lágrimas rolarem, comecei a ajudar a ensacar mantas nos kits promocionais, Tânia começou a brincar que em breve teríamos visitas ilustres, não dava para acreditar que estávamos trabalhando, a atmosfera era mesmo de um domingo no parque, dia ensolarado, não faltava nada para uma manhã de lazer. Saímos para almoçar e foi como chegar a uma igreja: no sul do país, se há uma religião comungada com unanimidade é o chimarrão e o churrasco. Conhecidos de nossa cicerone, a Profra. Lurdes, lhe perguntavam detalhes sobre jornada, por exemplo, quem era o vencedor do prêmio de R$100.000,00. Quem será? Em menos de quarenta minutos estávamos de volta ao QG. Os convidados chegavam aos poucos e eram as professoras, que ajudariam na manipulação das caixas com os quatro volumes, de encadernação luxuosa, que condensam os vinte anos de jornada, divididos em Poesia, Ficção, Ensaios e Memória. A edição de 1780 exemplares, lançamento da Editora UPF e Edebra Editora, tomava o saguão de entrada da Biblioteca e o entretenimento dos convidados era colocar quatro volumes num estojo acartonado. A dupla de professoras, Liana Branco e Leoni Pezzini, corrigiam provas em silêncio, isto é, faziam os últimos retoques no programa de palestras. As professoras Neuza rocha, Elizane Cayser e Eliane Becker, também tinham o seu dever de casa: em silêncio definiam detalhes das seções de autógrafos da Jornadinha. E chegavam mães e filhas, netas e sobrinhas e eu me vi cercado por quase vinte mulheres.

Me ajoelhei no chão e comecei a montar caixas, montar o conjunto dos volumes, anotando mentalmente tudo que ouvia, e a Professora Tânia, que dois dias antes tinha tido uma audiência com o Presidente da República, sentada no chão e cercada de caixas, brincava com a sua dificuldade em montar um estojo e ordenar os volumes históricos dos quais era uma das principais protagonistas, contagiava de alegria a todos que chegavam, revelando que levava uma hora para pregar um botão e não soube cozinhar arroz até o segundo ano de casada, outras revelações femininas começaram a serem feitas, a atividade de professora e empreendedora lhes arrancavam irreversivelmente das antigas prendas do lar, acenando para um domínio visível das mulheres em eventos desta natureza, e mais uma vez foi inevitável não refletir com paixão sobre o que eu ouvia: A Professora Dalva Bisognin, uma das fundadoras da jornada me apresentou sua mãe de 80 anos, e sua filha e suas netas gêmeas de quatro anos, que ajudavam a carregar caixas e separar livros. Havia ali quatro gerações, havia também uma estudande de pedagogia, que tinha estudado com a professora Dalva e agora lecionava para as gêmeas. Sugeri uma foto, brincávamos de montar uma jornada quando a Professora Tânia nos avisou que ao acabar com a tarefa dos livros iríamos espichar as cadeira. O que seria isso? Professora Lurdes entrava e saia da sala trocando informações com Tânia e seus auxiliares, os piás da jornada, que cuidavam do transporte dos kits para os hotéis da cidade. Eles seriam colocados nos quartos dos escritores e convidados, ao chegarem em seus aposentos já teriam lhes esperando o material da programação. Nem na feira de Frankfurt há este requinte, embora a organização da Jornada tenha a semelhança de um evento daquele porte, pela qualidade dos produtos e materiais distribuídos. Espichar as cadeiras seria espalhá-las sob as lonas do circo. Lurdes à frente, demonstrando que as turbinas de cada operação da jornada tinham o botão de ignição sob o seu dedo indicador. Problema, o único percebido até então: não foram instalados quatro holofotes para iluminação da área da platéia. Fácil, foi resolvido, num segundo os ânimos se inflamaram e no outro segundo sediam a atmosfera de domingo novamente. Já era noite alta, oito horas, um batalhão de formigas brincava de alinhar cadeiras e desenhar o picadeiro. E, mais surpresa: chega para ajudar com os olhos, a artista plástica Roseli Doleski, a criadora do troféu 20 anos da jornada, esculpido em bronze, uma figura feminina alada, como símbolo dos grandes vôos alcançados pelo evento. Veio ajudar com os olhos, apoiava-se em muletas, saída recentemente de uma cirurgia grave. Era difícil acreditar pelo seu semblante doce e alegre, um sorriso de menina, talvez a própria cara do circo. Fiquei sabendo ainda, que nesta visita ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, noticiada na imprensa, ele comprometeu-se em alocar recursos financeiros para a construção definitiva do circo. Mas eu soube que houve uma troca do Presidente com a Professora Tânia, não revelada pela imprensa: o Ministro da Educação não poderia comparecer a abertura do evento, mas o presidente prometeu, como compensação, a construção de uma estrutura permanente do circo. Ou seja, a 10a Jornada Nacional de Literatura de 2003, já começou também. Agora vamos desfrutar com paixão, da nona, que começa de fato amanhã.

Luís Peazê
Clínica Literária

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